terça-feira, 5 de outubro de 2004

palavras

Sabem o que é querer escrever e não ter, ali à mão, uma folha de papel?! andar esgravatando ao derredor e nada que não esteja já escrito e a tua cabeça estrebucha de palavras como uma torneira a pingar de desarranjo sem mais que o chão onde escorrer e a alagar casa! Assim, as palavras numa cabeça sem um papel onde a mão escreva qual vaso parando ou sustentando a água, vão pingando e perdendo-se no éter mesmo quando, já tresloucada de procurar papel que as sustenha, ou mão que as estanque, te ouves palavras a saltar em tua volta e são elas saindo-te pela boca em sons desconexos molhando o ar em volta, perdidas, formando por vezes frases como os pingos acabam por formar um lago que invade tapetes e pode causar, a tempo, inundação pior que igual a chuva grande. Assim, as palavras sem um papel onde assentar.
Um dos papéis encontrados, neste quase delírio de impedir que as palavras inundassem o ar em volta, estava escrito numa das faces com um poema. Um ror de palavras que não vieram de ti. Alguém as escrevera nele sobre a vaidade, os palcos, os que batem palmas e os que são ovacionados; alguém que talvez tenha andado aos papéis anos e anos, ou, talvez, tenha começado apenas a sentir a força de percorrer o papel para se parar a palavra, precisamente quando cresceu a necessidade de andar aos papéis. Antes, talvez, digo eu, nunca tenha sentido esta quase compulsão de escrita, de deixar a palavra desfazer-se amparada, qual pingo de água no balde, sobre a folha...ou rebenta...inunda...enlouquece...entope...derrama-as em discurso anódino.
Mas...o tal papelinho escrito de um dos lados, dizia (dizia-te?!) que o mundo é um palco de representações/ que o peso das reproduções/ a afirmação das imagens/ nega o amor/ que se deve afirmar. Dizia mais... o papelucho, menor que a tua mão já de si pequena, ali abandonado, afinal também escrito na outra face como um vulgar papel de lembrar que preciso de ...comprar...fazer. Dizia, em letra de escrever em teclado impresso a um rosa esbatido, que o tempo da vida faz/ o meu ser estrebuchar/no vazio/ de nem a uma nem outra/cena pertencer/e de o circulo vicioso/ entre poder da submissão/ e submissão dos poderes/(...) estilhaçaram-se as representações/que sufocam as emoções.
Toma lá para aprenderes a ter cuidado quando procuras papel para escrever – NUNCA LER!!! Precisas de papel vazio! um papel com palavras é um perigo – como um balde cheio de água ou colocado de fundo para o ar debaixo da torneira que pinga. Não deves ler...nunca! quando andas, assim, em busca de papel!
Pronto, agora, o tal papelinho diz, tal e qual o que (talvez!) as tuas tais palavras fossem dizer escrevendo em papel outro: Exilada/ fora e dentro do mundo./ no lado invisível/ o dos sonhos de todos/ para lá das ilusões.
O papelucho a reenviar os pingos de volta em ricochete ( as palavras para dentro da tua cabeça, da tua boca) uma magia, mas uma possibilidade que as leis da Física não desmentem – tudo uma questão de direcção do pingo e de momento cinético no ressalto. A palavra a bater na folha escrita e retornando, palavra que não escreveste chocando com palavra que está lá, direitinha para o local de origem na tua boca, na tua cabeça.
O papelucho, ocasional na busca doutro, fez-te (diz lá, diz!!) fez-te engolir as palavras que ias escrever. Deixaste de pingar!
Não te foi permitido alagar como farias sem qualquer papel. Afogou-te a palavra e remeteu-te ao sentir.
Como dizia o papel: deixando sair os sentires/para sentir a plenitude da existência corporal/como a pertença universal.
E aqui, precisamente nestas palavras, o papelucho foi rasgado. Alguém (tu?!) mataste as palavras...um dia...não viste o lado escrito a rosa e escreveste, apressado, um lembrar de cebolas, carne, arroz e um prosaico ir ao banco. E...não sentiste as palavras chorando, contorcendo-se no rrrrr do rasgar transversal?!
Querias saber mais...o resto... não existe.
Agora talvez seja o tempo de escrever as tuas. Só agora...depois de mescladas com as do papelucho!
(Afinal havia tanto onde ir buscar papel e logo havia de te aparecer este papelucho escrito de rosa e rasgado tão transversal que te permitiu as palavras, perturbadoras...vivas!)

Agora, talvez, já não seja o tempo de escreveres.

A manhã já abriu de sol. O silêncio ensurdecedor das tuas palavras amainou e, lá fora, surgem os rumores de mais um dia. Um domingo. O fundo longínquo do sueste, o deslizar seco das folhas de buganvília no quintal, um cão, o tic-tac do relógio estragado na parede.


As palavras acomodadas na cabeça qual torneira que parou de pingar...


(Escrito em 25/9/04)

18 comentários:

Unknown disse...

Perturbador. Encontrar palavras passadas que fazem perder as novas que temos para escrever. Beijinhos e bom feriado.

almaro disse...

As palavras vivas, aquelas que nascem quase sozinhas no nosso olhar, voltam sempre. Tem o seu tempo, aparecem sem avisar. São amigas. Intimas. Não batem à porta. Abraçam-nos quando andamos distraídos…

Anónimo disse...

Este teu post cortou-me a respiração. Divinal! bjs* wind

Toze disse...

Que inspiração ! Parabéns pelo excelente texto :)

P.S- Quando me visitas deixas o teu endereço trocado, trata disso Ok ? Beijo grande e até já :)))

Finurias

Toze disse...

Ok Seila, já resolveste uma parte , agora só falta a parte do bolgspot para...blogspot, kiss Kiss :)

Finurias

lobices disse...

...palavras que são apenas palavras mas que são a articulação de sons e de sentimentos que se formam dentro de cada um de nós... e todos nós temos palavras que necessitamos de brotar... é isso que fazemos; uns de uma maneira, outros de outra mas sempre e sempre na forma de palavras... claro que não basta ler apenas o título do post... e não é preciso "please" para cá vir... eu "ando" por cá... :) *

lique disse...

Li e reli o teu texto (extraordinariamente bem escrito, aliás) e, vi-me a escrever num papel que me desse de volta palavras já escritas por alguém. E a imaginar as palavras a contorcerem-se por alguém lhes escrever por cima. Acho que também recolhia as minhas palavras ... Extraordinário! beijos, mulher!

Anónimo disse...

Queria dizer algo inteligente, algo profundo ou algo sério mas, vê lá tu, está a dar-me p'rá parvoíce: porque é que não foste buscar um bocado de papel higiénico (virgem, claro)? Como no tempo em que acampávamos e ele servia p'ra todos os efeitos... Só p'ra lermos este teu post e termos que pensar, não foi? :)
M...

M.P. disse...

MARAVILHA de texto!

inconformada disse...

Lido, relido, sentido e confirmado.
Em alturas assim é mesmo preciso um papel vazio.
Avisar para não ler ? Não vale a pena :-)
Beijo

bertus disse...

O teu texto deixou-me literalmente siderado!
Assim não vale! como é que eu vou deixar um comment (daqueles que não fazem sentido, irónicos a roçar a má educação ou a criticar por criticar, gargalhando...)é que não faço ideia nenhuma, inda por cima estou mais aborrecido que um gafanhoto e trôpego dos dedos?? Mas sempre te vou dizendo (escrevendo) que a falta de papel também me aflige muito -e este assunto daria pano para mangas pois escrever sobre o negócio das papeleiras neste país tem muito que se lhe diga, é mesmo caso para dizer que "esse negócio é fogo!" não sei se me faço entender...-, que o papel quando o procuro nunca está à mão de semear, qué que pensas?? e eu costumo escrever muito fora de casa, escrevo que "até se me arrepela a alma!" e sem descanso, até a dormir "escrevo", aliás os meus melhores textos são "fabricados" a dormir e não penses que estou a brincar que eu não brinco com textos sérios embora inda não tenhas lido nada de muito sério da minha parte...porque tou sempre a rir. Já tu não és assim, penso eu; estás sempre a questionar-te "onde é que eu tenho o raio do papel?" ou "inda há bocado tinha aqui o papel e já me desapareceu!", que é como quem diz "andas muito aos papéis", estás sériamente empenhada com o papel que representas aqui na blogsfera, eu não; se fôr á casa de banho e não houver papel...podes crer que...prontos! a contenção conseguida até aqui, foi-se! sou incorrigível. Desculpa-me. rometo que da próxima me porto...pior.
Beijinho e intés!!

Anónimo disse...

A vida é um rio que passa, e a morte outro rio por entre as estrelas. Papéis. palavras, símbolos com significados? Antes o deus da floresta, Dionisio, da alegria e do vinho para esquecer tudo isto! (willnow)

Francisco disse...

"A manhã já abriu de sol"; "Precisas de papel vazio". Sempre novos começos, todos os dias, é belo.

Ana Russo disse...

E para donde mando eu o tal motor ? Já o tenho e acho que vai ser bem inspirador... Não posso deixar aqui... Bj

M.P. disse...

Olá! Só para dizer que APENAS vi hoje que tinha aqui um link para o cantito.. :) Mal agradecida at+e agora, venho compor o que nem sequer me tinha apercebido...MUITO OBRIGADA! E vou de imediato retribuir! **

Unknown disse...

Por muito estranho que te pareça já te tinha imaginado assim. Sente-se que há em ti uma absoluta necessidade de escrever. Não importa como nem o quê, escrever... escrever...
Um abraço grande.

Anónimo disse...

Consegui chegar aqui :-) Que texto magnífico sobre a compulsão pela escrita, os riscos de contaminação da escrita, a autenticidade da escrita! Continuação de um bom dia para ti :-)

Manuela Neves disse...

Inspiradíssimo, como uma BRISA que nos toca o rosto, ajoelho e choro, as palavras fervilham, não consigo escrever só deixar-me envolver por pensamentos.
BJS.
ALUENA

adoro estes espectáculos - este é no mercado de Valência

desafio dos escritores

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meu honroso quarto lugar

ABRIL DE 2008

ABRIL DE 2008
meu Abril vai ficando velhinho precisa de carinho o meu Abril

Abril de 2009

Abril de 2009
ai meu Abril, meu Abril...




dizia ele

"Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. Mas quanto à primeira não tenho a certeza."
Einstein